Amanheci abril triste porque Lygia partiu.
A notícia brotou nem 24 horas depois de eu ter comprado os quatro romances da autora num sebo virtual — se você quer economizar e curte umas capas na estética anos-1980-90-coleção-vagalume, fica a dica.
Gosto de pensar que essa “coincidência” foi eu, uma pequena escritora, tropeçando na radiofrequência dessa soberana da literatura brasileira.
Tomara que esse esbarrão passe algo dela pro lado de cá, pensei.
Jururu, rendi minhas homenagens à Lygia nas redes sociais e li alguns artigos sobre sua vida. Quando me dei por satisfeita, eis que:
Dona Lygia surpreendendo a todos bem no final, assim como o fez em tantas histórias que contou. Pois é, a danada mentia a idade! Algo bem comum na geração dela.
A minha geração parece não mandar esse caô com tanta frequência, mas tamanha honestidade não significa que estamos em paz com o envelhecimento.
Eu mesma não nego que já me incomodo com minhas marcas de expressão — será culpa do “efeito Zoom”? Em plenos 32 com a testa igual pia de tanque: bastou uma reação que ela fica cheia de dobrinha, dá até pra lavar uma roupa!
A dermatologista afirmou que meu problema é ser muito expressiva, que não preciso me escancarar toda ao rir, que acabo sobrecarregando os músculos da face.
Minha senhora, em pleno Brasil 2022, tu acha mesmo que eu vou poupar alegria?!
O que você sonha para a sua velhice?
Deixando de lado a ameaça do botox, pensar o envelhecer é delicado, esfrega a finitude na nossa cara. E, num país carente de projetos públicos de previdência social ampla e decente, é indiscutível que envelhecer é um privilégio interseccionalizado1 que impacta largamente a forma como cada um experimenta esse processo.
Para além de pensar as possibilidades (ou a falta delas, em uma necropolítica institucionalizada) de envelhecer, o avanço da idade também pode ser deslocado do registro capitalista (corpos que não produzem são descartáveis) para o campo da humanização: viver mais é acumular experiências, encontros, afetos, trocas… histórias.
Envelhecer conta, traz e é história; histórias, várias delas.
Cristina é mexicana e vive na França. chegou em Paris em pleno maio de 1968 e logo se envolveu na militância, tendo trabalhado no acolhimento de exilados das ditaduras latino-americanas, na luta por pautas feministas e, mais recentemente, em causas ecológicas. Nos conhecemos em um passeio turístico no Atacama, onde ela foi com Marianne (francesa, amiga, companheira de luta e parceira de viagem há 40 anos) para celebrar os 80 anos das duas.
Confere o restante das fotos e do relato aqui, ó:
Ler essa história, viver a minha e acompanhar a trajetória de tantas mulheres me faz pensar em como a revolução sexual abriu portas para sonharmos outros roteiros de vida que não fiquem presos à socialização padrão destinada a mulheres no patriarcado, e o quanto isso é valioso, enriquecedor e saudável.
O que me leva a ponderar… Será que a rabugentice “característica” da velhice é apenas reflexo da tensão de que o fim está mais próximo? Não será também pelo arrependimento de não se ter vivido sendo fiel a quem somos de verdade?
Quando somos quem somos mesmo, o outro vê quem ele não é ou não consegue ser. Quem está vivendo a própria essência resplandece. Quem não está... bom, você sabe.
Coisas bacanas para absorver no seu tempo
📚 Venha ver o pôr do sol - Lygia Fagundes Telles
Lembro da sensação que percorreu meu corpo quando li esse conto pela primeira vez. Eu devia ter uns onze anos e fiquei aceleradíssima: quero fazer isso um dia, será que posso? Vinte anos se passaram e cá estou eu, tentando fazer isso, do meu jeito, mas movida pela inspiração de autoras como a Lygia.
🎧 A idade vai bater (podcast Ppkansada)
Esbarrar nesse episódio não foi à toa, claro. Papo sobre envelhecimento e como esse processo natural tem um peso diferente para quem é mulher.
O que saiu da minha gaveta
“Pátria Armada” vem aí!
Primeira boa notícia: se você contribuiu com a campanha do livro de contos Pátria Armada, saiba que seu exemplar já está em produção!
Segunda boa notícia: eu angariei tantos apoiadores que vou ganhar mais uns exemplares do livro para sortear. Se você não garantiu o seu, fique de olho no meu Instagram, vou divulgar as informações do sorteio por lá.
Participação na Revista O’Cyano
O Carnaval me presenteia de muitas formas. A última foi o convite da Brena O’Dweyer, amiga querida e editora da O’Cyano, para escrever um conto com a temática carnavalesca para a nova edição da revista.
Aceitei prontamente a proposta já com a ideia na ponta do lápis: narrar em prosa poética o encontro dos meus avós maternos, que se conheceram em um baile do Riachuelo Tênis Clube na folia de 1957.
O resultado dessa viagem lacrimosa (percorrida com meu pacotinho de Kleenex a tiracolo) está disponível para para leitura gratuita aqui (O’CYANO 16 FULGOR).
O envelhecimento visitou minha cachola uma porção de vezes nas últimas semanas, seja na partida de Lygia, na contagem dos meus cabelos brancos, no testemunho do tempo passando para os meus, na emoção de acenar para as velhas guardas que vi de pertinho na Sapucaí.
Por aqui, envelhecer está cada vez menos o ser idosinha nos moldes da bisa e da vovó, e mais uma tela vazia, esperando cores, apliques, miçangas, purpurina. Tá mais em eu me realizar do que me rodear de pessoas porque tem que. É o tal do gargalhar com prazer que falei aqui.
Só sei que, nesse embalo tesudo pela vida, aceitando as marcas de expressão, a gente realmente fica aberta aos encontros, mesmo que de relance: não é que dona Lygia realmente passou algo para mim?
Até o próximo recadinho, onde eu e você estaremos um pouquinho mais velhas, grisalhas e com nosso título de eleitor regularizado2 — sinal de que estamos aqui, vivíssimas. Que assim seja!
Conversando com uma amiga esses dias, ela lançou: "não estou apta a fazer 40 anos. Não tenho maturidade". Aí ponderei que temos uma imagem da velhice associada a rabugice. Nessas coincidências, li uma fala do Mateus Aleluia que diz que, na vdd, seremos sempre os mesmos. Meninos, mas de cabeça branca. E que só mudamos um pouco. Concordo com ele. Me imagino sempre menina, mas de cabeça branca.