Eu dizia às amigas: é a nossa vez de rir. Nossa vez de escrever. Escrever?
– Sim. É a maneira mais íntima de investigar, a mais potente, a mais econômica, o suplemento mais mágico, o mais democrático.
Hélène Cixous
Tá boa, pessoa?
Colocar intenção em uma coisa que queremos realizar mexe na teia invisível que conecta tudo e todos a ponto de ela se enroscar na nossa cara. Os sinais apitam… ou é só a gente que aguçou o foco do nosso olhar?
Em uma tarde calorenta de janeiro, atravessada graças à cerveja gelada, a Taís cantou a pedra: tá rolando uma onda de mulheres resgatando suas histórias.
Verdade. A inspiração de retomar o hábito da literatura na minha rotina veio do arrebatamento ao ler Água de barrela, da Eliana, autora de romances históricos que se conversam em um resgate ancestral próprio, mas também coletivo. Viro a esquina do Instagram e lá está a Tati, prestes a recuperar sua vivência como órfã em formato de primeiro livro, um romance sobre as “memórias guardadas em um corpo enlutado”; e a Carol Burgo, que lançou uma coleção nova em homenagem à sua vozinha?!
Não à toa, da mesa de bar para cá, tropecei no último livro de poesias da Danielle, que nomeou meu intento ao escrever: vingar.
É preciso, desse modo, vingar a mãe, vingar as matriarcas, vingar as mulheres, vingar os esquecidos, vingar os matáveis, vingar os queimados, vingar aqueles que fomos golpeados na cabeça, nas vísceras, no coração. (…) Vingar através da escrita (…) para honrar as mortas e os mortos, (…) [para] chamar alguém que nos lembre de algum sagrado, vingamos escrevendo para a memória sair, para ganhar um corpo pelo arredondado da letra (…).1
Gosto quando fico atordoada pelo baque do encaixe de uma palavra que define o que sinto e quero concretizar, mas não sabia dar nome.
Escrever, pois, é sangrar no papel. Já sei, já sabemos. Socializados em valorizar o sofrimento enquanto caminho redentor para, enfim, acreditarmos que somos merecedores, é quase automático entender as artes como mecanismos de gestão da dor, da perda, da tristeza — o são, mas não apenas.
Escrever é sangrar o papel — e gozar também.
Venho aqui hoje defender o transbordamento do escrever para além do incômodo.
Escrever é deleite e, justamente por sê-lo, por vezes evitamos, no costume de economizar espaço para o prazer fluir simplesmente porque sim, porque queremos, porque gostamos. Afinal…
Qual é a mulher que, sentindo agitar em si uma estranha vontade (de cantar, de escrever, de proferir, enfim, de pôr para fora coisas novas), não pensou estar doente? (…) E por que você não escreve? Escreva! A escrita é para você, você é para você, seu corpo lhe pertence, tome posse dele. Eu sei por que você não escreveu. (…) Porque a escrita é, ao mesmo tempo, algo elevado demais, grande demais para você, está reservada aos grandes, quer dizer, aos “grandes homens”; é “besteira”.
Aliás, você chegou a escrever um pouco, mas escondido. E não era bom, porque era escondido, e você se punia por escrever, você não ia até o fim; ou porque, escrevendo, irresistivelmente, assim como nos masturbávamos escondido, não era para ir além, mas apenas para atenuar um pouco a tensão, somente o necessário para que o excesso parasse de nos atormentar.
E, então, assim que gozamos, nos apressamos em nos culpar – para que nos perdoem –, ou em esquecer, em enterrar, até a próxima vez.2
Mais um encaixe sonoro ecoa em mim quando Hélène afirma que mulheres foram afastadas da escrita “tão violentamente quanto o foram de seus corpos”. Impossível não associar meu flerte tímido com a escrita e toda uma adolescência e juventude confusa com castrações e dinâmicas sutis de culpabilização da sexualidade. Imagino que muitas que estiverem lendo este recadinho vão se identificar. Infelizmente.
Ora, escrever e reconhecer-se sexual dão vergonha porque são formas de exposição. Portanto, colocar-me no sexto3 pelos meus próprios movimentos, com o meu corpo, conforme convida Cixous, não deixa de ser um vingar-se:
É preciso que ela [a mulher] se escreva, porque é a invenção de uma escrita nova, rebelde que, quando chegar o momento da libertação, lhe permitirá realizar as rupturas e as transformações indispensáveis na história.
Vingares a caminho
Indico aqui três títulos que estão em pré-venda para você dar uma olhada:
Eliana é uma inspiração imensa na minha trajetória de escrita e Solitária, seu novo romance, será lançado em maio. É a história de duas mulheres negras, mãe e filha, que moram no trabalho, num desses condomínios luxuosos (tipo Vivendas da Barra, sabe?). A mãe, Eunice, é testemunha de um crime que ocorre na casa dos patrões e Mabel, sua filha, constrói o caminho que levará a resolução do crime e a uma mudança radical na vida das pessoas que cercam as duas.
Já estou contando os dias para o lançamento e se eu fosse você já garantia o seu exemplar de mais um romance que promete muitas reflexões cruas e fundamentais para tornar o nosso país um lugar melhor.
Quando as árvores morrem - Tatiana Lazzarotto
Conheci a Tatiana em uma oficina virtual da Eliana Alves Cruz e nos conectamos rapidamente. Acompanhei o processo de parto de seu primeiro livro pela newsletter Sou toda sonho e semana que vem, 09/04, Quando as árvores morrem será lançado em São Paulo pela Editora Claraboia.
O romance é dedicado ao pai da Tati que se foi e deixou saudades até em quem não o conheceu — como é o meu caso. Vejo um caminho recheado de conquistas literárias para a Tati e quero ser aquela pessoa que vai falar que a conheci antes da gata estourar ainda mais! Então não se avexe, garanta seu exemplar e venha fazer parte desse clubinho comigo também, vem!
Pátria Armada (coletânea de contos)
No meio da pandemia decidi começar a realizar o sonho de desenvolver minha carreira literária e os primeiros frutos dessa intenção já começaram a brotar: o livro Pátria Armada: retratos de um Brasil distópico está em pré-venda e terá um conto meu: Edifício Sussekind.
Nele, uso da nem-tão-ficção para refletir sobre a quarentena ser um direito de classe: enquanto os moradores do edifício pedem suas entregas protegidos, cabe ao porteiro Jurandir o risco de garantir o isolamento dos demais. Assim, o conto narra mais um dia na rotina de trabalho do porteiro. Deixo aqui um trecho:
Agradeço desde já se você puder contribuir com a pré-venda e/ou divulgar para mais pessoas — nós, escritores independentes, contamos muito com o boca a boca para fazer nossa escrita chegar a mais gente. Além de gratidão, ainda garanto autógrafo e dedicatória especial, tá? 😉
Falo contigo no próximo recadinho, exercício que me ajuda a não abrir mão do meu desejo: quero vingar, eu e minhas mulheres, nos colocando no texto. E o farei, gargalhando de prazer.
Orelha de Vingar (Danielle Magalhães), escrita por Tatiana Pequeno.
CIXOUS, Hélène. O riso da medusa. Bazar do Tempo, 2022. Todas as citações desta edição são tiradas dessa obra.
Neologismo criado por Cixous a partir da aglutinação das palavras “texto” e “sexo”, associando sexo feminino e escrita textual.