escuta isso aqui enquanto lê*
O sol castiga o asfalto irregular que meus pés percorrem. Olhos apertados de fotofobia, acompanho o rebolar roliço-caramelo que me leva para passear com a pressa de viver que só um labradoido tem.
Mel adora fazer feira comigo: ela ganha carinho de estranhos, pedaços de fruta, bebe água de coco e de borracha de mangueira. Eu me divirto com os caminhos que ela abre, feito Moisés canina, apartando um corredor no mar de gente fofocando entre as barracas.
Não estranho a mesa longuíssima que surge no meio da feira, naipe digno para sustentar o bolo de aniversário da cidade. Subúrbio é assim mesmo, inventivo muito antes de startup faria láimer, ô Glória! E por falar nela…
Vou catando cavaco até a cabeceira da mesa, sendo puxada pela Mel, que lambe afoitamente os pés de Dona Gloria. Meus olhos umedecem mais rápido que os dedos de vóvis, gargalhando enquanto afaga o corpanzil peludo que ensaia repousar sobre seus chinelos. Ergo a cabeça e me deparo com a mesa cheia dos nossos, sorrisos emocionados. Perco de vista o tanto de gente à mesa se refastelando num almoço cheiroso que só.
Antes mesmo de conseguir abrir a boca para falar, sou catapultada pela Mel, que sai farejando os arredores, curiosa e alegre. Aceito ser guiada por sua ânsia até ela cansar, deitando numa pedra à beira do mar do Arpoador. De lá, admiro o banquete com o coração ritmado no balanço do rabão imortal da minha companheira. Busco a cabeceira novamente, certa de rever Dona Gloria com sua caipirinha em riste.
Ela não está lá.
As lágrimas me despertam.
Quem pousou a leitura aqui há um ano acompanhou o esgarçar de um luto inimaginável: minha avó foi uma das mais de 600 mil vítimas da Covid no Brasil. Inimaginável porque a gente até sabe que um dias as pessoas morrem, mas numa pandemia, por descaso, desinformação e crueldade, de fato, não seria a minha aposta.
É curioso como sonhamos sobre a morte, nossa e dos outros. Quero morrer assim, quero morrer assado. Tinha para mim a certeza de que Dona Gloria partiria daqui uns bons anos, rodeada de amores, parando o trânsito com seu velório. É amargo constatar que minha avó não morrerá de novo, de um jeito mais bonito, aglomerado, digno — como sonhei, como tantos que a conheceram sonharam também.
Tenho dificuldade de aceitar que minha avó não vai morrer de novo e de um jeito “melhor”.
Bastou rabiscar essas palavras no papel que, na mesma noite, sonhei que ela morria de infarto, como meu avô, seu grande amor. O sonho se repetiu algumas vezes, a mesma cena, me sacolejando até despertar, mais uma vez, chorando. De alguma forma acho que ela me visitou só para morrer de outro jeito para mim, em sonho.
Dona Gloria, professora em vida, leciona até na morte.
Debruçar meu luto neste espaço tem sido um laboratório para experimentar a sensação de ter tantos (137!) pares de olhos me lendo. Acho importante treinar essa estranheza uma vez que me pretendo escritora. Cheguei a cogitar evitar o tema, fazer a discreta e sofrer sozinha, de forma elegante (?), mas escrever também é sangrar no papel.
Aceitei que inundar para fora da gaveta é o jeito que encontrei de me in/escrever escritora no mundo real-virtual. Sorte a minha contar com a sua companhia.
Hoje consegui ler com calma. Sabe, na minha família, a gente conversa muito sobre morte desde sempre, pois minha tia avó cresceu morando na rua do cemitério, então é um assunto que estou acostumada a falar e ler.
Foram tantas as reflexões que fiz ao longo do seu texto, obrigada por partilhar com a gente, estarei sempre lendo o que você escreve, mesmo que demore um pouco.
Posso aproveitar e indicar um livro sobre luto? Meu livro favorito da vida é o "Mesa para Cinco", da Susan Wiggs. Foi a melhor coisa que passou pela minha frente durante o luto da morte da minha mãe.
Infelizmente não consegui terminar de ler pois lágrimas <3