E aí, pessoa?
Faz quase seis meses que Dona Gloria cantou para subir. Parece outra vida. Aliás, em tempos pandêmicos, tudo parece outra vida; não só a vida que eu levava antes de março de 2020, mas também a vida da semana passada, do mês passado, a vida de ontem mesmo.
Será que isso é o rebote de experimentar uma presença maior no presente? Será o resultado de economizar energia planejando o futuro? A percepção do tempo está toda embaralhada, feito colar que você nunca usa e, quando lembra que existe, tem que ficar desembolando os nós: isso foi hoje, esse pedacinho daqui trincado foi ano — mês? — passado… Por vezes, desisto e uso meus colares com nozinho e tudo, afinal, cada coisa na sua hora, até o desenlace.
O curioso é que venho desembaraçando muitos nós (metafóricos e literais) desde que vovó partiu: vaidosíssima, ela tinha inúmeros badulaques em incontáveis caixas, caixinhas e caixotes. Herdei apenas um colar, que uso, por enquanto, para ficar arrumada na sala de casa, numa espécie de dia da marmota natalino.
A ausência de uma pessoa tão magnética como Maria da Gloria mexeu em toda a teia de relações familiares. Os pontos de intercessão dessa rede que ela deixou têm procurado, cada um ao seu jeito, se situar e redesenhar a trama, com cuidado para não rasgar — apesar dos esgarçamentos incontornáveis dos últimos anos. Somos, hoje, um emaranhado de gente cozendo novos fios, na esperança de montar uma teia firme novamente — mas de um jeito totalmente inédito.
Amanhã é sexta-feira treze, treze de agosto, então aniversário de Dona Gloria. Vóvis adorava aniversariar em “sextas 13” para ostentar seu apreço por inverter superstições e comprovar seu vigor católico.
Dizem que as primeiras grandes datas são mais difíceis, depois acostuma. Talvez por não conviver diariamente com ela há três anos, me acostumei com sua presença distante. Revejo a foto acima, na minha época de vovoffice (mistura de vóvis com home office) e agradeço a bênção que foi poder conviver tão intimamente com minha mais velha. Por vezes, esqueço que ela não está mais aqui. Relembro quando o coração aperta sem aviso prévio ao ser chacoalhada por uma lembrança remota, cruzando minha memória feito foguete.
Tenho para mim que esse tipo de episódio, um relance do passado, um gesto repetido, são visitas que os nossos fazem, seja para nos amparar, seja para nos fortalecer, seja para juntar mais um caquinho, cobrindo, aos poucos, o buraco da ausência que deixaram em nós.
No matriarcado de Dona Gloria, eu atendia pela alcunha de “Minha Neta Mais Velha Favorita”, título este revogado pela própria a bordo de uma ambulância, gravando uma mensagem linda em vídeo para a família toda. Não consigo rever o vídeo, mas suas palavras ecoam em mim desde então:
“Um beijo para a Carol, minha neta artista que nem eu”
Assim, na lata. A confiança de uma artista ancestral que reconhece outra artista. Um lembrete para eu fazer minha arte, a deixa para eu colocar a próxima peça do mosaico que estamos construindo juntas nesse processo de luto — nas palavras de bell hooks, um ritual de rememoração:
Acolher o espírito que vive além do corpo é uma maneira de escolher a vida. Abraçamos esse espírito por meio de rituais de rememoração, por meio de cerimônias em que invocamos a presença espiritual de nossos mortos, e por meio de rituais comuns na vida diária, em que mantemos por perto os espíritos daqueles que perdemos. Às vezes evocamos os mortos ao permitir que a sabedoria que eles compartilharam conosco guie nossas ações no presente. Ou os evocamos reencenando um de seus hábitos. E o luto (…) também é uma maneira de homenagear nossos mortos, de mantê-los por perto.1
Ainda não escolhi o gesto que virará tradição para os próximos trezes de agosto. Candidatos não faltam:
Ouvir Maria Bethânia aos berros
Me entupir de camarão
Tomar caipirinha
Dormir na boia dentro da piscina que ela abriu no quintal só porque eu nasci
Ler/sonecar na rede
“Não ser de ferro”: a cartada que ela sempre tinha na manga para justificar comer doce de sobremesa ao final de t-o-d-a-s as refeições
Talvez eu faça tudo isso, junto e misturado ao som da bateria da Mangueira homenageando a menina de Oyá, loa que encantou meu sono agitado às vésperas de sua partida, hino carnavalesco que me acordou naquele 17 de fevereiro de 2021, minutos antes do hospital telefonar.
Samba daí que eu sambo daqui, vó.
Obrigada demais por ter lido tudo isso até aqui. Muitos amigos-amores têm respondido aos meus recados e/ou publicações no Instagram vibrando com meus rabiscos, principalmente os relatos sobre minha avó materna, a Dona Gloria.
O retorno carinhoso de vocês é um alento nessa pedrada emocional.
É também uma injeção de ânimo para que eu não pare de escrever e honre a alcunha de “neta artista” que Dona Gloria me deixou de legado. Ela sabia bem das coisas que eu era capaz de criar e foi uma grande incentivadora da minha criatividade, lendo meus recados, me ensinando a desenhar e a pintar, fazendo artesanato juntas, criando fantasias para o carnaval.
Bom, o que me resta agora é criar. Isso não é fácil, acreditem: requer estudo, horas de dedicação, atenção, idas e vindas, perseverança. É muito fácil se esquivar da própria arte, pois a vida urge, os boletos chegam, o mundo colapsa. Apesar de, estou me acostumando a insistir, abraçando o processo criativo como ele é:
Repito: o que me resta agora é criar. Com isso, a frequência desta newsletter pode mudar nos próximos meses — espero que você não se importe. Além das caraminholas que trago para cá, junto das indicações de leituras e escutas, pretendo compartilhar um pouco do meu processo criativo enquanto escritora. Torço para que você não se importe com isso também!
Um abraço apertado em você, pessoa querida! Se cuida, viu?
E lembre-se: vacine-se quando chegar a sua vez, use máscara pff2 e encha uma panela.
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Tradução: Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2020. p.232.
leitura gostosa como um abraço de vó ❤️