Às vezes acho que ano passado é 2019. Um ano que se arrastou inconsciente adentro no ritmo cambaleante de Dona Gloria, chinelas de sola ralada pela dificuldade de erguer seus joelhos de titânio.
Annie Ernaux, Nobel de literatura do ano passado (2022, não 2019), afirmou na Flip que a velhice precisa ser vivida porque não será lembrada. Concordo, mas nem tanto.
Não será lembrada por quem envelheceu — embora eu acredite que quem se encanta é capaz de revisitar a própria vida, do início ao fim —, mas será por quem acompanhou o envelhecer da pessoa que partiu. Tal qual a crença popular mexicana lindamente contada em Viva - A vida é uma festa: morrer é cair no esquecimento, lembrar é reviver. Alguns que ficam até incorporam quem foi — fenômeno "credo, que delícia" que hoje se materializa na minha mãe.
Eu, no meu lugar de neta, assumi a missão de espalhar Dona Gloria por aí. Levei dois anos para despertar do ímpeto de acumular tudo o que lhe pertenceu: roupas, bijuterias, caixas de lápis de cor, porta-melequinhas — embalagens de tamanhos variados que ela guardava, porque vai que a gente precisa delas um dia. O desapego diz mais sobre a força de quem vive o luto do que sobre descaso.
O espalhamento principal dessa ancestral, você já sabe, é pela escrita. Registrei parte de suas memórias para contrabandeá-las para a literatura. Postergo essa missão sem a menor vergonha na cara. Ainda não me sinto suficiente para construir um romance. Vejo potencial, rola frio na barriga, deixo para daqui a pouco. E pensar que Dona Gloria ordenou que eu escrevesse tudo logo para ela ler antes de morrer. Sou uma péssima neta, assumo.
O passado recente me deu aquela coceirinha para retomar o projeto do livro: esbarrei com gente que escreve, recebi convites literários para 2023, ajudei uma escritora que admiro a revisar e estruturar seu livro de contos — algo que jamais fiz, mas para tudo tem uma primeira vez — e uma doida que confia seu filho literário a outra doida. Capaz de eu aproveitar o tempo desocupado que ganhei no meu segundo layoff para fazer aquela pesquisa de campo (tantas vezes adiada) para o livro.
Numa sincronia que só o desespero do capitalismo tardio proporciona, minha recomendação do último recado para você fazer vários nadas introduziu um papo sobre descanso mais aprofundado, quiçá propositivo, e já nas primeiras semanas de 2023 — é para louvar de pé! Ou melhor: deitada mesmo, tirando uma naninha.
Vi a Declaração dos Direitos Descansistas rolando pelo feed das redes sociais e fiquei contente de ver o trabalho de Tricia Hersey, pioneira do The Nap Ministry, devidamente creditado como inspiração.
Para quem lê em inglês, recomendo Rest is Resistance: A Manifesto, livro recém-publicado por Hersey e ainda sem tradução. Beber direto dessa fonte ajuda a não estagnar em um debate raso sobre o assunto e que não questione privilégios de gênero, cor e raça.
Retomando os nadas que fiz durante o recesso, comecei a ler Mandíbula e ainda estou partindo (Editora Patuá), novo livro de poesia de Mariana Imbelloni.
Um livro curto sobre uma partida longa, diz a contracapa.
Eis a sorte de encruzilhar a vida com uma poeta com quem minha amizade foi sonhada por — adivinhe? — Dona Gloria, amicíssima da avó de Mariana.
Dona Gloria ainda está partindo.
e chegando.
numa personagem rascunhada
nas aquarelas que a Cássia vai pintar com os Caran D'Ache que ela herdou de vovó
nas anáguas de tule que tomarão as ruas do Rio junto ao confete e a serpentina
Até fevereiro,
Carol! Que delícia de texto. Não vejo a hora de conhecer Dona Glória por sua escrita.
Abraço demorado. <3