— Silêncio, aí pessoal! Silêncio aí, é rapidinho, prest’enção aqui, ôu!
— Cala a boca que seu tio quer falar!
— Brigado, brigado. Eu quero fazer um brinde: depois de tempos tão difíceis, tantas perdas, vamos agradecer a Deus por podermos celebr—
— Juntos, de verdade, sem chamada por vídeo—
— Tô falando, porra. Não posso nem fazer um brinde nessa casa…
— Faz logo seu brinde, tio!
— É, a gente tá te ouvindo!
— Não, não, deixa pra lá…
— Ihhhh…! Para de show!
— Fala, benhê. Não vou te interromper mais, prometo.
— Tá bom então, é jogo rápido: um brinde à alegria de passar um Natal juntos, presencialmente, com abraços e longe de telas!
— Já viu aquele meme?
— Qual?
— Aquele meme do cachorro?
— Não é um vídeo?
— Ai, não lembro! Eu recebi pelo zap, era um link que abria num vídeo do Instagram.
— Então é vídeo, tia, não é meme.
— Ué, não é a mesma coisa?
— Não!
— Tá, tá! Mas você sabe de qual eu tô falando? Pera, xô achar aqui… Acho que eu mandei pra sua irmã, vou procurar na conversa com ela.
— Não me mandou, não. Já vi aqui e a última parada que tem na nossa DM é o reels da capivara pegando uma praia no Arpoador.
— Ah, esse é ótimo também, já viu? Aqui ó:
Ah… Nada como um Natal sem telas.
Não sei você, mas eu desaprendi a estar com outros humanos sem a extensão espertofônica a tiracolo. Reconheço o vício, a dependência. Ora cacoete, ora escapismo.
O celular (e tudo o que cabe nele) é a chupeta do adulto, já diz a minha amada Maíra. Falar isso talvez seja indício de que eu já não sou mais tão jovem assim para estar sentindo falta de puxar papo sem ter como base um amontado de pixels.
E fora da newsletter, você tá bem?
Eu já tinha um textão ranzinza pronto para te mandar admitindo meu despreparo para ressocializar em pleno final de ano, mas a ômicron colocou eu e o boy de molho em casa. Ou seja, voltei a ter saudades do cansaço emocional de ver gente.
Graças à vacina, nossos sintomas foram superleves, mas tão leves que eu não estou acreditando até agora, que já cumprimos o isolamento.
Vez ou outra, ainda me pego pensando: tá, e quando é que vai começar a dar merda? Nada como uma sequência de traumas para a nossa ansiedade florescer e ser mais criativo-negativa, né?
Saiu da minha gaveta
Já nos acréscimos de 2021, meu conto “Ismael” ganhou o mundo na coletânea Acaso Literário e está disponível para leitura de graça: só clicar e ler, tá na p. 26 :)
Depois me conta o que achou, tá? Se curtir, espalha pra mais gente, afinal, um dos desafios de quem escreve é não ser lido apenas pelazámiga.
Negódi literatura
Não vou mentir: estou ficando craque na arte de dizer não e comunicar os meus limites — exceto com livros.
Comprar títulos avulsos, assinar clubes de leitura e receber livros como brinde, aceitar livros de parentes, ganhar de presente… A estante fica cuspindo lombada, lindíssima à la Bela e a Fera, sabe?
É uma compulsão? Talvez. Vou ler tudo em vida? Assim desejo, mas o babado é: gosto de ter livros perto de mim para eles me julgarem com um êeee, Carol na voz da Déia do Não Inviabilize toda vez que eu tô pendurada na minha chupeta de adulto e não lendo um deles.
Para aumentar a marcação cerrada sobre esse vício, eu elejo alguns títulos para ler simultaneamente e vago com eles pelos cômodos a ponto de eu debruçar o olhar pela borda da tela brilhante do celular e me sentir perseguida.
Os títulos que me perseguem no momento são A cabeça do santo (Socorro Acioli) e Conversas corajosas (Elisama Santos), e os que já cumpriram sua missão e estão numanáice na estante, devidamente lidos, marcados e rabiscados são:
A extinção das abelhas (Natália Borges Polesso)1
Digamos que cada dia no Brasil do abjeto da república é um capítulo que ficou de fora do livro da Natália — por isso mesmo que demorei a concluir a leitura (a vida fora da página tá foda, né?).
O romance conta a história de Regina, os fins dos mundos e as relações que se (des)costuram nesse fluxo. Entre tantas frases que marquei a lápis, destaco:
“Mas até a morte parece um caminho de escolha, quando não é uma fatalidade.”2
Em março de 2020, eu não alcançaria a profundidade dessa afirmação. Uma escolha: do governo federal, que escolhe a perversidade; e as não-escolhas dos cidadãos trabalhadores, precarizados em diferentes níveis a depender de gênero, raça e classe, que optam por se expor para continuar a ter alguma renda e evitar a fome.
São as malditas alternativas infernais3 que movem o (sobre)viver nesse sistema falido e colapsado; aquelas “situações onde a população se vê obrigada a escolher a ‘menos pior’ das condições”.
Consegue fazer uma lista das coisas inaceitáveis com as quais estamos nos conformando?
O surpreendente propósito da raiva (Marshall Rosenberg)4
Curtinho, peguei emprestado com uma amiga querida para aprender a lidar com a raiva de forma menos destrutiva, tanto para mim quanto para os outros. É uma leitura rápida e fácil, mas não é simples de absorver.
Para ser bem honesta, vou ter que reler algumas vezes o livro para conseguir explicar o que é a raiva para você. Nascida fluente em CMV (comunicação muito violenta) — sou carioca, porra —, eu entendo o que o autor propõe, mas ainda não introjetei a linguagem. Praticar é preciso!
Primeiro eu tive que morrer (Lorena Portela)5
Acredito que o encontro entre leitor e livro tem hora exata para acontecer. Primeiro eu tive que morrer estava me observando há umas semanas da prateleira aqui da sala. Puxei para ler no primeiro dia do ano e só larguei depois que virei a última página, no mesmo dia.
Lorena conta a história de uma publicitária que vai para Jericoacoara para não sucumbir de vez ao burnout que a consome. Lá, ela vive transformações viscerais que dizem muito sobre o que importa na vida: afeto, acolhimento, viver em paz.
Além da imensa identificação com a protagonista6, curti demais ler um romance brasileiro contemporâneo que não se passa no sudeste. E o gostinho de caminhos cruzados com a autora ao ouvi-la aqui? Passei a admirar ainda mais sua trajetória na literatura, uma inspiração para novas escritoras e escritores.
Se você for ler mesmo esse livro, já adianto que o mantra da Guida é algo para anotar e espalhar pelas paredes da casa, tá?
♫ E por falar em saudade burnout
: já rabisquei um tanto sobre excesso de trabalho e ocupação, não deixa de ler 😉
Esperançar em vinte e dois…
… difícil, maaaaaas
O ano mal começou e a questão sanitária voltou a se acentuar com o tsunami da variante ômicron. A alta transmissibilidade assusta, mas graças à vacina e ao SUS, o cenário é menos apocalíptico do que no ano passado.
Porém, mesmo com um índice baixo de pessoas necessitando de cuidados hospitalares, ainda é gente pra caramba, como a Flávia Oliveira pontuou no primeiro episódio do Angu de Grilo deste ano.
Nessa nova realidade pandêmica, tenho procurado adaptar meu foco para fazer escolhas prudentes. Deixo aqui uma reflexão que pode ser bem-vinda para você:
Pensar em risco é algo que cada um pode e deve fazer em nível individual, assim como tomar vacina e usar máscara bem ajustada no rosto, cobrindo nariz e boca.
Outra coisa que também podemos fazer é pressionar o governo para que ele cumpra seu papel e cuide da população com políticas públicas de distribuição de máscara pff2 e testagem em massa. A saída é coletiva, não tem jeito.
Fico por aqui. Cuide-se, tome a dose de reforço para segurar o tranco da ômicron, encha uma panela e lembre-se:
PS: não esquece que 4 de maio é o prazo para tirar ou transferir o título de eleitor!
POLESSO, Natália Borges. A extinção das abelhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
POLESSO, p. 294
O conceito de “alternativas infernais” foi cunhado por Isabelle Stengers, filósofa e historiadora belga.
ROSEMBERG, Marshall. O surpreendente propósito da raiva. Tradução: Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2019.
PORTELA, Lorena. Primeiro eu tive que morrer. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2021.
PORTELA, p. 48: “Eu me sentia tão feliz que achava errado. (…) Estar feliz daquele jeito me fazia acreditar que algo muito ruim aconteceria em breve, para garantir que aquele sentimento terno e pleno não era para mim.”