História com dois agás
Um bolo de chocolate e lampejos da infância que dizem muito sobre o agora
E aí, pessoa?
Escrevo com o bracinho abençoadamente dolorido pela minha aguardadíssima segunda dose. A ficha ainda não caiu — ou caiu e eu não senti direito, dada a pororoca de emoções dos últimos dezoito meses. Sinto meu músculo emocional esgarçadíssimo, típico de quem não aguenta mais — mas continua aguentando mesmo assim.
Anunciei no último recado que passaria a compartilhar aqui um pouco do meu processo criativo de escrita. Mal sabia que, dias depois, meu inconsciente me presentearia em sonho com uma memória valiosíssima de infância, um episódio que tem tudo a ver com o que eu faço da vida. Chega mais e senta que lá vem a história...
Enfileirada com meus colegas de turma numa calçada de paralelepípedos sujos, olho para cima e leio "Confeitaria Colombo" na placa circular protuberante sobre o toldo azul. Aconchego meu exemplar de Ludi na Revolta da Vacina num abraço apertado, contendo um gritinho de empolgação. A terceira série do Colégio don Quixote terminou de ler o livro a tempo para o grande evento do dia: um café da manhã de autógrafos com a autora, Luciana Sandroni, na confeitaria retratada no romance e testemunha da História.
Confesso: não lembro da conversa, tampouco do momento dos autógrafos e possíveis fotos. Lembro perfeitamente do bolo de chocolate da Colombo e, mais que tudo, do transe em que mergulhei assim que pisei pela primeira vez no saguão da confeitaria.
Embora boquiaberta com o esplendor que se agigantava diante dos meus olhos, o êxtase que de fato tomou conta da Carolzinha de Oito Anos foi outro:
estou no mesmo lugar que Machado de Assis tomava café!
… era o que minha cabeça repetia, em silêncio, só para mim.
Até hoje assisto mentalmente a minha versão miniatura, emocionada, passando a mão em todas as cadeiras, corrimãos e paredes da Confeitaria Colombo, feliz da vida, certa de que a conexão tátil percorreria os séculos até Machado.
Frisson à parte, ela sabia muito bem o que estava fazendo, dando a deixa para um caminho que percorri de forma nada linear. Hoje, adulta, enxergo esse episódio como a prova de que eu sempre soube, lá no fundinho, o que eu queria e gostava de fazer da vida: história com os dois agás — o maiúsculo, que realizei na graduação na Uff, e o minúsculo, que pretendo concretizar daqui pra frente, desengavetando meus caderninhos rabiscados.
Escrever e ter a pachorra de colocar meus escritos no mundo é honrar esse desejo tão genuíno de infância. É remendar meu diploma em História rasgado um sem-fim de vezes por achismos petulantes de tantos. É narrar invenções da minha cabeça que tenham raízes na História para trazer à tona outros personagens desse trem desenfreado em que a gente se meteu.
Esse recado da minha "criança interior” veio como um amparo e me alegrou tanto, sabe? Achei prudente deixá-lo registrado para além da minha memória, feito um lembrete caso eu cogite desistir — e você, testemunha, pode dar na minha cara também se eu vier de migué.
Curiosa sobre essa memória infantil, reli Ludi na Revolta da Vacina já ciente de que encontraria problemas, afinal, o livro é de 1994, datadíssimo. Isso me fez pensar no receio que tenho de ver meus textos envelhecendo mal. Já apaguei muitos rabiscos que tinha no Medium, de 2014-15, por relê-los alguns anos depois e achá-los bobos ou rasos demais.
Só que tentar ficar aperfeiçoando a própria imagem como alguém que escreve na internet é uma arapuca: a gente muda, amadurece, aprende um bocado de coisa, reconhece vacilos, abandona umas verdades, adota outras… O jeito é buscar ficar em paz com a ideia de que, uma vez lida por pares de olhos que não os meus, estou na arena, vulnerável — para citar Brené Brown.
Para treinar a vulnerabilidade, deixo aqui todos os artigos que escrevi para a Revista Capitolina. Eu era uma pessoa bem diferente da que sou hoje quando comecei a colaborar para a revista; sem dúvidas, aquela Carolina foi fundamental para eu chegar aqui, da mesma forma que a Carolzinha de Oito Anos também foi.
Por fim, já que a leitura hoje não se dá apenas nas páginas da obra, mas também nas redes, encontrei um resumo do livro aqui, junto de um "alô!" da autora, que perguntou aos leitores: o que a Ludi faria na pandemia do coronavírus? Ela buscaria Oswaldo Cruz no passado? Ou viajaria para o futuro para pegar a vacina?
Eu aposto que ela iria para o futuro. Imagina catar o Oswaldo no passado para o cara desembarcar em dois.mil.e.vinte.um e descobrir que caozada antivax ainda pega em otário. Já bastam os duplo twist carpados que ele deve tá dando no túmulo desde que a pandemia começou…
📚 Se eu fosse você, lia
Nada vai acontecer com você — Simone Campos
Conheci a Simone numa oficina de escrita que fiz recentemente na Acaso Cultural. Tive o privilégio de contar com o olhar atento da autora em alguns dos meus rabiscos. Nada vai acontecer com você é seu mais novo romance, publicado pela Companhia das Letras. Suspense ágil, que te prende e atravessa com personagens reais numa sequência de fatos tão possíveis que toda a trama soa assustadoramente convincente e verdadeira.
Suíte Tóquio — Giovana Madalosso
Já tinha ouvido falar dessa autora por aí; impossível deixar passar esse nome que mete a maior bronca na capa, acho chique. Suíte Tóquio é um livro rápido: li em uma semana assim, de bobeira. O estilo de narrativa ligeira, acompanhando o pensamento das protagonistas, é bem interessante e feito com capricho de detalhes que constroem dois universos conectados, embora apartados. E a questão da maternidade tensionada com o atravessamento de classe dá muito o que pensar.
🎧 Se eu fosse você, ouvia
Os mistérios de Lygia Fagundes Telles — 451 MHz
Ouvir esse episódio especial da série Narradores do Brasil me fez chorar por alguns motivos:
Por descobrir a relação bonita que Lygia (98 aninhos e vacinadíssima!) tem com sua neta, Lucia Telles, que a ajuda a gerir a carreira e cuidar da obra da avó 🥰 Você sabe que eu ando particularmente sensível com vovós desde que perdi a minha para a covid-19, em fevereiro, portanto, é isso: berreiro oficialmente aberto.
Porque a obra de Lygia é fenomenal. Da mesma forma que lembro com clareza de ler Ludi e pirar o cabeção quando Machado de Assis aparece na trama, recordo nitidamente do cagaço que senti ao ler Venha ver o pôr do sol e outros contos da autora. Aliás, a Companhia das Letras reuniu todos os contos da Lygia numa coletânea belíssima.
Por último, e não menos importante, o episódio conta com a leitura, na voz da neta Lucia, de um conto inédito da Lygia, além de cartas que Drummond trocava com a escritora. Prepara o lencinho: difícil não se emocionar ouvindo a sensibilidade humana desses gigantes da literatura brasileira.
De volta para a compressa de gelo no bracinho
Fico por aqui, pessoa. Vou deixar para o recado de outubro outras caraminholas e algumas novidades literárias que têm me movido. Agradeço demais a sua leitura e espero que você esteja bem, dentro do possível, na brecha que você criou para se manter vivíssima da Silva.
E, para não perder o hábito…
Boas leituras e escutas, vacine-se quando chegar a sua vez, use máscara pff2 e encha uma panela.